O olhar enfiado no chão, quando lhe abri a porta, e o passo pesado, como se carregasse o mundo às costas, condizia com a voz arrastada com que o tinha conhecido ao telefone. Mas bastaram poucos minutos para, do alto dos seus 70 anos, emanar uma beleza profunda de quem já parecia ter vivido sete vidas e sobrevivido a outras tantas. Contava histórias com a beleza honesta das entranhas: umas extraordinariamente duras; outras a revelarem, com intensidade, que a bondade também é marca humana. Umas profundamente tristes. Todas muito bonitas. Todas contadas com um afeto do tamanho do mundo.
O Alberto cresceu num contexto de profunda pobreza. Passou por privações materiais severas e por variadíssimas experiências que hoje seriam, sem quaisquer dúvidas, classificadas como maus-tratos muito graves. Recostado na cadeira, ouvia, maravilhado. Como era possível manter aquele afeto no olhar depois de tantas e tantas experiências de um sofrimento inimaginável? Como era possível, apesar do peso da sua história, despertar, no outro, gestos de bondade, de forma tão generalizada? Não demorou até que o Alberto desse a senha para alguma compreensão. A Professora Lurdes matara-lhe a fome, tantas e tantas vezes. Enfrentou quem lhe fizera mal, e criou as condições para que pudesse dar asas ao sonho de estudar. O seu rosto ilumina-se quando fala da velhinha Professora Lurdes.
Recostado na cadeira limito-me a ouvir. E a saborear aquela experiência rara. O Alberto emana beleza, vida e bondade por todos os poros. Tinha tudo para ser amargo, seco, desvitalizado, hostil. Mas não é! Tinha tudo para fazer como aquelas pessoas que insistem que o seu problema é serem demasiado boas pessoas, ao mesmo tempo que não conseguem disfarçar uma hostilidade de fundo. Mas não faz! E contagia. É impossível não gostar do Alberto! Foi assim que foi despertando invejas, mas sobretudo, gestos genuínos de respeito, afeto e aproximação.
Por mais extraordinária que seja a história de vida do Alberto – e é, sem qualquer espécie de dúvida – não há como não deixar sombras. Talvez me tenha procurado porque se queira (finalmente) zangar com quem lhe fez mal (uns mais por ignorância e privação; outros por inveja ou perversidade sádica). Talvez seja essa a brecha de luz que procura para se iluminar do direito pleno de gozar a vida.
Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.


